A CAMA

A CAMA

(Carolina Ortiz)

Foi ali que tudo se fez:
os maiores amores de uma vida,
escondidos sob lençóis
desgastados,
desbotados,
de anos de existência

Minha primeira dor,
meu grande amor,
tudo ali registrado,
com o tempo amarelado
e na sua estrutura
solidamente eternizado

Quando nasci,
fui naquela cama parido
Entre lágrimas, angústia e dores
o primeiro contato com o amor:
minha mãe me segurou,
apesar de tanta dor

Minha primeira grande febre
fiquei noites tossindo e acordado
mas estava feliz
tinha mamãe ao meu lado
A madrugada veio
e com ela o desespero:
no meio do sono profundo
molhei o lençol inteiro
Não acreditei que fiz xixi
justo na cama em que nasci!

Cinco anos se passaram
e para o interior mudei,
a cama foi conosco
e ali que me curei
Na tempestade tive medo,
trovões gritantes e pesadelo
A cidade apavorante
despertou meu desespero
Minha mãe me abraçou,
pediu calma e me confortou
Desde então nunca temi
as tempestades
pelas quais vivi

Já adolescente, a primeira namorada
que, digo verdade, até hoje,
por tanto tempo é por mim amada
Naquela tarde de verão,
minha mãe e meus irmãos
foram para cidade viajar
eu fiquei sozinho
para minha musa encontrar
Entre travesseiros e curiosidades
de dois adolescentes
de quase a mesma idade,
tudo foi acontecendo,
e nosso amor crescendo
Testemunha foi a cama
daquela louca chama
Naquele inesquecível bê-a-bá
eu aprendi a amar

Entre dias e correrias,
de namorada passou a esposa
e já adulto e maduro,
naquela noite infeliz,
no meio do escuro
atendi ao telefone
A voz rouca me dizia
que àquela cama eu voltaria

Cheguei com esposa e filhos
embaixo do temporal
Aos prantos olhei no quarto,
pois não tinha hospital
Soluçando, segurei suas mãos,
com um aperto no coração,
trêmulas, diziam adeus
falei de amor e beijei os lábios seus
Naquela hora meu peito doeu,
mas tive que aceitar: minha mãe morreu

A partir daquele dia
toda a nossa grande família
como mágica se separou
mas eu fiquei com a cama
que sempre me acompanhou

Meus filhos dormiram lá
e minha esposa também
Hoje, porém, é um triste dia
que, apesar da alegria,
minha neta ali deitada
talvez nunca irá saber
que a cama tão antiga,
tão cansada e tão vivida
foi abrigo de minhas histórias,
meus amores e minhas glórias
Hoje a cama vai ser queimada
e na memória guardada
Sob seu lençol amarelo,
toda a história de um velho
Vou apagar o que ocorreu
destruindo a cama
que, destino, o cupim comeu

O amor de uma vida toda
se perdendo entre cupins
Talvez seja uma tola história
mas é o conto que a vida quis