A Próxima Copa

Não falta comentarista politizado  que recorra a uma velha frase de Karl Marx e substitua  nela o termo “religião” por “futebol” – o futebol tem mesmo alguma coisa de ópio do povo, como tem sua alta dose de circo. Nenhum deles foi original na comparação e, mesmo sem o saber, repuseram em circulação a esquecida tese de um pensador holandês, Johan Huizinga (1872-1945), para quem  a ideia de jogo é central na elaboração do processo civilizatório.

Ele não criou propriamente a expressão homo ludens  – o homem que brinca ou joga -, mas a estudou com maior acuidade e foi encontrá-la em muitas atividades, como os atos de filosofar, de guerrear, de criar novas formas de arte, de leis e de linguagens.

Quando, por aversão aos termos estrangeiros, se pensou na palavra que substituísse o inglês foot-ball, o latinista brasileiro Castro Lopes propôs ludopédio (jogo ou brincadeira com o uso dos pés), que até hoje alguns usam com forte sentido depreciativo.

Homo ludens, o homem lúdico, é o que encontra prazer no que faz, ou por outra, que faz tudo com prazer. Assim deve ter sido – reflete o holandês – o empenho inicial do homem em representar sons, criando para isso um alfabeto. Deve ter sido o aspecto mais agradável das guerras antigas e das mais ou menos modernas, submetidas imemorialmente a certas regras que lembram jogos e não excluem gestos de cavalheirismo. Essa mesma necessidade de regular prazerosamente até as mais sérias e requintadas ações humanas deu origem à sacralidade e à liturgia, ainda hoje presentes nas relações jurídicas que guardam uma teatralidade algo ridícula, mas notável na expressão artificial e artificiosa de advogados, nos gestos e nos trajes de juízes, promotores, desembargadores. Dos grandes eventos religiosos nem se diga: a noção do desempenho de papéis bem marcados é evidente nas palavras, na postura, nos símbolos, nos paramentos, na música sacra.

O exercício de atividades lúdicas é a mais comum das formas de sociabilização , com as crianças brincando de adultos, imitando seus atos, suas reações, suas palavras, seus papéis na sociedade.

Do bom aprendizado enquanto homo ludens é que se chega tanto à perícia do homo faber (o homem que produz coisas)e quanto ao ápice de seu desenvolvimento sociocultural, o homo sapiens – aquele que sabe, que raciocina.

Assim sendo, meu eventual leitor, sua adesão plena e entusiasmada   à próxima Copa do Mundo, competição de significado verdadeiramente ecumênico, que ocorrerá na Rússia, em meados de 2018, é uma intrincada combinação do prazer, do trabalho e do pensamento. Não podendo pessoalmente competir, você, como eu, delega aos melhores jogadores brasileiros um mandato cujo cumprimento é rigorosamente fiscalizado e cobrado; você quer ter a um tempo o prazer do entretenimento, o empenho da disputa  e a mais completa entrega emocional e intelectual a uma causa. A milhares de quilômetros do fato real, você e todos nós revelamos para o mundo exterior a plenitude do homo ludens, a imaginação do homo faber e a complexidade do homo sapiens.

Nada mal, hem?