Os bons de bico

O aeroporto já saiu de lá faz muitos anos, mas o nome continua o mesmo: a pista do aeroporto, lugar bom de se caminhar, porque plano, bem protegido dos ventos e dos olhares mais curiosos.

Sua clientela de caminhantes é quase toda de gente ao menos madura, para não dizer velha e velhíssima. Mas os fregueses do campo de futebol são muito crianças, alguns adolescentes apenas.

A pista de atletismo onde se caminha circunda o vasto campo de futebol, um local de muitos convívios sem conflitos de uso. Já vi a realização de três jogos concomitantes. Demarcar as áreas de cada disputa não é problema, como não o é determinar o local das metas. O que importa é jogar – com bolas próprias ou impróprias, com uniformes vistosos ou na mais democrática das distinções clubísticas, o time dos com camisa e o time dos sem camisa…

Como falam os meninos enquanto jogam! A maioria só grita, esgoela, pescoços grossos e vermelhos de tanto esforço. Como praguejam os meninos enquanto jogam! Entre uma e outra chulice, as mães são gravemente ofendidas. Mas, passado o calor da peleja, sabe-se: os xingamentos, por mais cabeludos que sejam, perderam o seu valor semântico, funcionam apenas como frases de estímulo, de censura. Ninguém quer ofender ninguém e tudo se esquece ao fim dos jogos.

Muitos deles não estão apenas naquele gramado: transportam-se pela força da fantasia ao Maracanã, ao Morumbi, estádios desse porte, ou às modernas arenas de Palmeiras e Corinthians. Imaginária câmera de televisão focaliza-os segundo a segundo, de forma que é preciso sempre aplicar-se ao jogo, com técnica, firulas, velocidade, força física. Uma vez ou outra, algum deles constrói mesmo uma invejável jogada ou marca um gol que se poderia chamar “de placa”.  Mas o que mais me chama a atenção são os especialistas da narração esportiva, por vezes descrevendo suas próprias jogadas. Valem-se do jargão e dos bordões que aprendem no rádio e na TV. Descrevem com emoção lances vividos ou inventados:

– “Lá vai Robertinho de posse da pelota. Está pela direita, a pequena distância da área adversária. Dois o vigiam de perto. Robertinho percebe o goleiro rubro-negro um tanto adiantado. Parece que vai arriscar dali mesmo. Pelas barbas do profeta! É gol! É gol do Robertinho! Por cobertura! Uma pintura de gol! O que é que só você viu, Gabriel?”

Cada lance, real ou não, tem descrição precisa. Ritmo próprio, vocabulário específico, construções artificiosas de frases, concordância impecável e, claro, as tiradas de efeito criadas pelo locutor preferido.  Esses e erres redondinhos, pronúncia caprichadíssima, longe do dialeto caipira que usam no dia a dia. Ênfase verdadeira na garganta, enfim, uma aula prática de observação, interpretação, imaginação, participação.

Já faz bem tempo, levei um papo demorado com um desses narradores-peladeiros. Ele responde com naturalidade às minhas perguntas, com a pronúncia descuidada de seu grupo social, nada lembrando o vibrante e culto locutor de minutos atrás.

– Lá em casa nóis samo em seis irmão. Os dois mais véio trabaia. Eu vô na escola quando dá, porque nóis veve caçando serviço de diarista nessas fazenda da redondeza.

– Você fala bonito quando narra um jogo, hem?

– É memo, concorda sorrindo.

– Você sabe que fala diferente quando irradia futebol e quando fala com as outras pessoas. Por que isso?

– Nóis aprende de cor o que os home fala no rádio, na televisão. Despois é só apricá o jeito deles no nosso joguinho.